domingo, abril 19, 2009

Revista Época: “Governo quer revogar Lei Rouanet”

Leonardo Brant 18 abril 2009
A revista Época desta semana aponta o projeto do governo federal de desmantelar o mercado cultural, dependente da Lei Rouanet: “De seis anos para cá, o governo parece ter investido boa parte de seu tempo e do orçamento para retomar o espaço perdido para as empresas. Seria mais produtivo tentar elaborar com o setor privado uma proposta que corrija eventuais falhas da Lei Rouanet que adotar uma postura que mistura a pura demagogia com mais uma tentativa de dirigir a cultura e restringir a liberdade de criação”.
Governo quer revogar Lei RouanetAção pretende diminuir a influência da iniciativa privada na cultura. Por que isso pode ser ruim para o país
Celso Masson
A cultura brasileira é regulada por uma lei. Isso não significa que os artistas e produtores culturais do país sejam obrigados a seguir diretrizes definidas pelo governo, como ocorre nas ditaduras. Pelo contrário. A Lei Rouanet, criada em 1991 para garantir o financiamento do setor por meio de um mecanismo de renúncia fiscal, proíbe o governo de adotar critérios subjetivos para aprovar projetos culturais. Essa garantia legal da liberdade de expressão pode estar ameaçada. A Casa Civil submeteu à consulta pública um projeto de lei que pretende revogar a Lei Rouanet. A consulta vai até o dia 6 de maio. Depois disso, o projeto será submetido à votação no Congresso Nacional. Sua aprovação pode significar um retrocesso no financiamento da cultura – e alterar perigosamente as regras de um jogo que tem funcionado.
A Lei Rouanet, elaborada pelo diplomata Sérgio Paulo Rouanet a pedido do ex-presidente Fernando Collor, permite a qualquer empresa, pública ou privada, destinar à cultura até 4% do Imposto de Renda que deve ao Fisco. Para pessoas físicas, a dedução é de até 6%. Desde que foi aprovada, essa lei permitiu dirigir à cultura R$ 8 bilhões. Esse dinheiro ajudou a construir bibliotecas, a criar orquestras, a erguer museus e a edificar institutos culturais. Foi o dinheiro da renúncia fiscal que permitiu trazer ao país superproduções como os espetáculos da companhia canadense Cirque du Soleil – encenado pela primeira vez no Brasil graças ao incentivo da Lei Rouanet.
O mecanismo da renúncia fiscal é bom porque faz da cultura um bom negócio. Graças a ele, as empresas podem fazer propaganda de suas marcas usando recursos que seriam destinados à Receita Federal. Tanto que 80% dos investimentos em cultura no Brasil usam esse princípio. É verdade que a lei não é perfeita. Muita gente que tenta produzir cultura no país jamais se beneficiou da renúncia fiscal. Projetos de menor visibilidade ou dirigidos a públicos específicos tendem a ser preteridos pelos investidores. “A Lei Rouanet dá margem a abusos – e nisso todos estão de acordo”, diz Leonardo Brant, fundador do Instituto Pensarte e criador do blog Cultura e Mercado, sobre políticas culturais. “Vai da responsabilidade de cada um fazer um bom uso.”
Na visão do governo, a Lei Rouanet se tornou incompatível com as necessidades do Brasil. “A gestão da cultura pelas empresas se mostrou inadequada”, diz Roberto Gomes do Nascimento, secretário de Incentivo e Fomento à Cultura do Ministério da Cultura (MinC). Ele afirma que apenas 3% dos que propõem projetos concentram 50% dos recursos captados e – num raciocínio que considera a renúncia fiscal como dinheiro público – diz que apenas 10% dos recursos destinados à cultura são privados. “Não queremos o fim da renúncia fiscal para a cultura. O que não é sustentável é a manutenção da renúncia como seu principal financiador.”
Com o fim da Lei Rouanet, o MinC pretende ao mesmo tempo aumentar o próprio orçamento e centralizar as decisões sobre como e onde investir. O ministro da Cultura, Juca Ferreira, tem rodado o país para apresentar seus argumentos em favor da nova lei. Num dos slides de sua apresentação, ele projeta as metas de alteração das fontes de receita da cultura para 2012. De acordo com Ferreira, o próprio MinC arca com 10% das despesas do setor; o copatrocínio por meio de incentivo fiscal responde por 73%; ao Fundo Nacional de Cultura – que capta dinheiro privado para financiar projetos do MinC – cabem 12%; e a iniciativa privada contribui com 5%. Ferreira pretende que, até 2012, cada um desses quatro agentes responda por 25% do financiamento da cultura. Além de equilibrar as fontes de receita, ele quer dobrar a verba anual do setor para R$ 4 bilhões ao ano. Isso é a metade do que a Lei Rouanet injetou na cultura desde 1991. Para isso, seriam criadas uma Loteria Federal da Cultura e novas alíquotas de impostos para atividades culturais. Quem publica livros pagaria uma taxa para estimular a atividade de que faz parte.
Desde que esse projeto de lei entrou em consulta pública, ele tem sido questionado por produtores culturais e empresas ligadas ao financiamento da cultura. A principal queixa é que o novo projeto traz embutido um sério risco de dirigismo cultural por parte do governo e de restrição à liberdade de criação. Primeiro – e de modo mais flagrante –, por suprimir o artigo que impede critérios subjetivos para aprovar projetos. Mas não só por isso. O projeto também cria fundos setoriais: o Fundo Setorial das Artes, para apoiar teatro, circo, dança, artes visuais e música; o Fundo Setorial da Cidadania, Identidade e Diversidade Cultural; o Fundo Setorial da Memória e Patrimônio Cultural Brasileiro; e o Fundo Global de Equalização, que, segundo o MinC, financiaria aquilo que o projeto chama de “ações transversais”. Cada um desses novos fundos teria o próprio conselho gestor – grupos de influência que poderiam ampliar o controle do governo sobre a política cultural.
Não é a primeira vez que o governo Lula cria algo do tipo. Em 2004, o MinC tentou criar a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). Ela daria ao poder público, de modo explícito, a “responsabilidade editorial” e estabeleceria “atividades de seleção e direção da programação”, além de atribuir ao governo a responsabilidade por incentivar o respeito a “valores éticos e sociais da pessoa e da família”. O MinC criou um site para debater a nova agência. A página, no entanto, não trazia opiniões de pessoas contrárias à medida. Em junho de 2006, diante da constatação de que a criação da Ancinav restringiria a liberdade de expressão, o presidente Lula admitiu que ela fora um erro e desistiu da medida.
Um dos argumentos usados pelo governo para revogar a Lei Rouanet é que ela centraliza os investimentos nas regiões Sul e Sudeste. De acordo com dados do MinC, as duas regiões somadas se beneficiaram de 80% da verba captada pela renúncia fiscal em 2007. O Centro-Oeste ficou com 11%, o Nordeste com 6% e o Norte com 3%. Mas essa distorção reflete, na verdade, as desigualdades do país – que não foram criadas pela Lei Rouanet.
A distribuição dos recursos captados segue o mapa da arrecadação de impostos no país e não difere de quanto o próprio governo investe na cultura de cada região por meio do Fundo Nacional de Cultura, cujos recursos ele controla integralmente (leia na página anterior). É natural que grandes centros produzam e consumam mais cultura. Na França, 70% dos recursos da cultura são gastos apenas em Paris. Muitas empresas e produtores culturais, embora sediados nos grandes centros, atuam fora deles. “Faço eventos há dez anos no Norte e Nordeste com recursos da Lei Rouanet”, afirma o produtor cultural Afonso Borges, criador do projeto Sempre um Papo, que promove debates com escritores.
Ao apresentar sua proposta de substituir a Lei Rouanet, o governo montou um projeto em que as omissões também devem ser vistas com desconfiança. Onze artigos no projeto permanecem em aberto para regulamentação posterior. Segundo o ministro Juca Ferreira, a intenção ao deixar as lacunas foi não engessar a lei. Os especialistas entendem que, da forma como está, o projeto transfere ao Executivo uma função dos legisladores. “Da forma sugerida, ele vira uma proposta de gestão de governo, e não uma política de Estado para a cultura”, afirma o advogado Fábio de Sá Cesnik, do escritório Cesnik, Quintino & Salinas, especializado em incentivo fiscal. “Isso abre a porta para abusos de toda parte.” Além disso, ao tentar revogar a Lei Rouanet, o governo desmonta um mecanismo permanente de financiamento da cultura e cria um provisório. A nova Lei de Diretrizes Orçamentárias, aprovada depois da Rouanet, exige que qualquer nova renúncia fiscal seja aprovada a cada cinco anos no Congresso Nacional.
Para sustentar que o modelo de financiamento da cultura está esgotado, o governo afirma que apenas 50% dos projetos aprovados pelo MinC pela Lei Rouanet captam recursos das empresas. Mas o mesmo porcentual se aplica aos projetos propostos pelo próprio governo por meio da Fundação Nacional de Arte (Funarte), uma autarquia vinculada ao MinC. No ano passado, dos R$ 98,5 milhões aprovados para captação, só R$ 50,4 milhões foram executados.
A cultura não é o único setor que recebe incentivos fiscais no Brasil. Outras 15 áreas contam com mecanismos semelhantes. De acordo com os dados da Receita Federal, a cultura recebe 1,46% do incentivo fiscal do país. Comércio e serviços ficam com 29,26% (leia o quadro abaixo). A indústria recebe 19,8%. Apesar de o teto de renúncia para a cultura ser alto, R$ 1,4 bilhão em 2009, ele vem sendo quase totalmente usado, embora nem sempre naquilo de que o governo gostaria. “As empresas avançaram tanto sobre os domínios do Estado que isso passou a incomodar o governo”, afirma Leonardo Brant, do Instituto Pensarte. “O Ministério da Cultura não entende como o mercado se estruturou a partir da lógica do diálogo entre o setor cultural e as empresas.”
Anos atrás, o uso de recursos da Lei Rouanet para trazer ao Brasil o Cirque du Soleil criou celeuma. Os patrocinadores usaram a renúncia fiscal para financiar um espetáculo caro, cujo ingresso era inacessível à maior parte da população. O MinC aprovou o Cirque, mas depois se arrependeu. Nos anos seguintes, ele foi descartado sob alegações técnicas – mas continuou em cartaz porque seu patrocinador percebeu ter investido num enorme sucesso de público. Esse caso revela que as empresas não investem em cultura apenas porque deixam de pagar imposto, mas também porque isso interessa para suas estratégias de marketing.
O governo parece desconhecer essa realidade e abriga facções que não escondem o desprezo por grandes empreendimentos e grupos empresariais. O projeto em consulta pública deixa claro seu viés ideológico ao afirmar que “os projetos passarão por um sistema de avaliação que contemplará a acessibilidade do público, os aspectos técnicos e orçamentários, baseado em critérios transparentes e que nortearão o processo seletivo”. Ao colocar na lei algo tão vago quanto “critérios transparentes”, o governo tem a prerrogativa de vetar projetos sob qualquer alegação.
Nos últimos 18 anos, as empresas brasileiras desenvolveram uma inteligência extraordinária para lidar com o incentivo à cultura e contribuíram para consolidar o setor. De seis anos para cá, o governo parece ter investido boa parte de seu tempo e do orçamento para retomar o espaço perdido para as empresas. Seria mais produtivo tentar elaborar com o setor privado uma proposta que corrija eventuais falhas da Lei Rouanet que adotar uma postura que mistura a pura demagogia com mais uma tentativa de dirigir a cultura e restringir a liberdade de criação.

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